Em 2024 o Piauí registrou 38 casos de feminicídios. Em comparação ao ano de 2023, houve um aumento de 10 mortes de mulheres em razão do gênero. Os dados estão no painel de indicadores públicos da criminalidade, da Secretaria de Segurança Pública do Piauí.
Ligado diretamente à violência doméstica e familiar, o feminicídio geralmente é o último estágio após uma série de violências físicas e psicológicas sofridas pela vítima. A maior parte desses agressores estão dentro de casa e em todos os casos investigados pela Delegacia de Feminicídio de Teresina, o indiciado é ou foi companheiro da vítima.
Ao Cidadeverde.com a delegada Nathalia Figueiredo, titular da Delegacia de Feminicídio, detalhou o perfil dos assassinos e das vítimas. Ela pontua que os maiores agressores estão dentro de casa.
“O perfil do agressor, quando a gente vai a fundo, a gente vê que é aquele que vem do contexto de um relacionamento abusivo, agressividade, é uma progressão. Os estudos mostram que não começa no feminicídio, mas em outras formas de violência em que a mulher acaba não denunciando. A maioria dos casos aqui na feminicídio não houve denuncia anterior por parte da vítima. Poucos foram os casos que a vítima pediu medida protetiva. Então a gente vê que são mulheres que vivem em um contexto de violência, são agredidas fisicamente, psicologicamente, sexual, forçadas a praticar relação sexual sem consentimento e nesse caso sabemos que é estupro, mas que não denunciam e não rompem o ciclo de violência. E a violência ela é progressiva, ela vai chegar, então se a mulher não denunciar, se ela não romper esse ciclo de violência vai evoluir para situação mais grave que é o feminicídio”, afirma.
Em maio deste ano, Luana Alves, de 31 anos, foi morta a facadas diante dos 3 filhos, dentro de casa, no bairro São Joaquim, zona Norte de Teresina. O marido da vítima foi indiciado no caso.
Um mês depois, dois casos foram registrados em Teresina. Maria da Conceição, de 52 anos, foi morta por asfixia, dentro de casa no bairro Buenos Aires, zona Norte de Teresina. O marido, Antônio Filho, foi indiciado como autor do crime. Josilene da Silva, de 37 anos, foi morta com 17 facadas pelo ex-marido, com quem estava separada há mais de um ano. O namorado dela ficou ferido.
Em todos os caso registrados neste ano em Teresina, as vítimas foram mortas a facadas, asfixia ou estrangulamento, o que chama a atenção para a brutalidade em que as vítimas são submetidas.
“A gente observa sempre no local de morte violenta de mulher no contexto de violência doméstica familiar a brutalidade em que ela é morta. Então no geral o agressor para além de matar ele quer uma situação até de humilhação. Então a gente vê mulheres com lesões na região dos seios, nas genitais, do pescoço. Você vê que mulheres que passam por uma situação de agressão física brutal para depois ter a vida ceifada. Então é algo característico. Por isso que a gente chama a atenção na análise de local de crime em que houve morte violenta de mulher, analisar por meio da perspectiva de gênero que é isso. É entender que nesse contexto de morte não foi simplesmente a morte de uma mulher, mas sim pelo fato dela ser mulher. Ser vista como um objeto pertencente ao agressor que por algum motivo o insatisfez e ele praticou o ato violento”, explica a delegada.
De acordo com o painel de indicadores públicos da criminalidade, da Secretaria de Segurança do Piauí, de janeiro a novembro deste ano foram registrados 38 casos de feminicídios no Piauí. Deste, 10 foram em Teresina, com maior número de casos, dois cada, registrados nos meses de junho e setembro. Em todo o estado, o mês de setembro acumulou o maior número de casos, com 14 feminicídios. Em nenhum dos casos, as vítimas possuíam registros de medida protetiva contra seus agressores.
“Com relação as outras formas de violência eu vejo o aumento de registros no contexto positivo. Essas mulheres estão denunciando mais. Porque está havendo o aumento no contexto do feminicídio? E ai eu já vejo na questão de que por mais que elas se vejam como violentadas muitas mulheres continuam na relação. Quando eu não denuncio, quando eu não rompo esse ciclo, eu sou uma futura vítima do feminicídio. Quando eu vejo uma mulher sendo violentada e eu não denuncio eu estou sendo conivente para um possível feminicídio. Quando eu não peço medida protetiva, eu estou deixando de fazer uso de uma proteção essencial que a lei nos trouxe. Tudo isso tem que ser trabalhado de forma conjunta”, explica.
Em setembro, Laiane Kele, de 33 anos, foi morta dentro de uma kitnet no bairro Piçarreira, zona Sul de Teresina. Ela foi estrangulada após uma discussão com o esposo, Jaylson Araujo, que fugiu após o crime e avisou aos familiares da vítima. Ele foi preso e indiciado pelo feminicídio.
No mesmo mês, Karita Joara, de 35 anos, foi encontrada morta no bairro São Pedro. A companheira dela, Maria da Conceição, foi presa preventivamente e o caso aguarda a conclusão de exames para finalização do inquérito.
Um mês depois, outro caso chocou pela brutalidade. Maria de Jesus, de 73 anos, foi encontrada no banheiro de casa amarrada, com sinais de violência. O namorado, Francisco Firmino, foi indiciado pelo crime. Ele mantinha um relacionamento com a vítima há poucos meses e teria, no dia do crime, furtado objetos da vítima.
“A violência doméstica familiar ela não escolhe idade, ela não escolhe cor de pele, não escolhe classe social, qualquer mulher pode ser vítima. O que acontece de comum em relação a elas? É uma situação de dependência. Dependência emocionalmente porque muitas vivem uma vida inteira de violência psicológica, estão fragilizadas e não conseguem entender uma vida sem o agressor porque ele incute isso na mente delas. Ela é dependente financeiramente porque abriu mão da sua vida profissional para cuidar dos filhos em casa, então são várias questões que fazem com que essa mulher permaneça. Obviamente que quando a gente analisa os números a gente vê que a maioria dessas mulheres são mulheres negras, de classe social menos favorecida, que são as maiores vítimas e isso vem de um contexto histórico que a gente não só analisa a partir do sexismo e do patriarcado, mas também a questão do racismo. Então tem que ser tudo trabalhado para que a gente consiga reduzir esses números”, pontua a delegada.
De acordo com a Secretaria de Estado das Mulheres (Sempi), de janeiro a dezembro de 2024, o Protocolo ‘Ei, mermã, não se cale’ registrou 8.162 atendimentos pelo ChatBot, um aumento de mais de 460,19% em relação aos 1.457 atendimentos registrados de março a dezembro de 2023.
O órgão explica que o protocolo se organiza em três eixos com a capacitação de profissionais de hotéis, bares e restaurantes; atendimento psicossocial 24h, incluindo os finais de semana e feriados, através do número Whatsapp 0800 000 1673 e a atuação em eventos culturais.
A análise da secretaria é que o aumento no número de atendimentos é reflexo da integração dos serviços da rede de proteção às mulheres e divulgação dos canais de ajuda nos espaços de grande sociabilidade.
Em dois casos registrados neste ano, as vítimas deram entrada no hospital com causa mortis diferente da que os laudos futuros apontaram. Em junho, o marido de Maria da Conceição informou que ela teria sofrido uma parada cardíaca. Os laudos cadavéricos apontaram morte por asfixia o que ajudou na conclusão do inquérito e indiciamento do marido.
Foto: Arquivo / Cidadeverde.com
Em setembro, a companheira de Karita Joara alegou ter encontrado a esposa enforcada dentro de casa. Laudos apontaram que a real causa da morte da vítima foi por estrangulamento. Para a delegada Nathalia Figueiredo, esses casos mostram a força da comprovação técnica para que a polícia possa embasar a culpabilidade dos autores nos crimes.
“Primeiro que eles tem a falsa sensação de impunidade. A Polícia Civil como um todo, e ai eu falo não somente a investigação como a perícia criminal e o Instituto Médico Legal, trabalham de forma integrada. Por isso que a gente acaba conseguindo entregar esses trabalho onde é desmascarado o autor. Porque a gente baseia em provas técnicas. Tivemos dois casos no mesmo mês em que os corpos deram entrada como SVO, como morte acidental. E através de um olhar atento do técnico de necropsia e do médico que atendeu esse corpo percebeu-se que haviam sinais de violência nesse corpo que não são condizentes com aquilo que o autor relatou. Então é um trabalho interligado. A partir do momento, por exemplo, que chega no HGV e que visualiza essa situação os profissionais já acionam a Polícia Civil. É um trabalho técnico integrado que vem mostrando resultado e vem responsabilizando criminalmente esses autores que acham que passarão impune”, conclui a delegada.
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